RECORDANDO COSTA MARQUES por Barros Veloso

No dia 3 de Julho passado, fui surpreendido pela morte de Jorge Costa Marques. Tendo sido seu director e seu amigo, quero deixar aqui um breve texto de pesar e recordar a sua personalidade singular.

Quem era Jorge Costa Marques? Nascido a 24 de Agosto de 1949 em Lisboa, completaria 70 anos dentro de pouco mais de um mês. Licenciado em Medicina em 1976, fez parte da geração que cumpriu o Serviço Médico à Periferia. Depois disso estagiou dois anos em Oncologia no IPO de Lisboa e fez exame de saída do internato complementar de medicina interna (1981). Entre 1985 e 2015 esteve à frente da Unidade de Quimioterapia do Serviço 1 do Hospital dos Capuchos e, durante esses 20 anos, foi aprovado no concurso de especialista de medicina interna pela Ordem dos Médicos, chefiou uma equipa do Serviço de Urgência no Hospital dos Capuchos, tendo sido sucessivamente provido por concurso de provas públicas nos graus de Assistente Hospitalar (1991), Consultor (1994) e Chefe de Serviço de Medicina Interna (1999). Em 2000 foi nomeado Director de Serviço do Hospital dos Capuchos (Serviço 1) tendo-se aposentado da função pública em Outubro de 2015. Desde então passou a dedicar-se exclusivamente à coordenação da Unidade de Oncologia Médica e Quimioterapia da Clínica de Santo António da Reboleira que fundara em 1996. Durante todos estes anos interveio em inúmeras actividades, organizou jornadas de Oncologia e publicou diversos artigos científicos.

Estes dados, muito resumidos, constam do seu curriculum vitae com data de 2018. Mas, serão suficientes para nos dar um retrato do que realmente foi? João Lobo Antunes, num texto escrito há alguns anos, usou o conceito de “currículo escondido” que se aplica como uma luva a Costa Marques. De facto, quem o conheceu, guarda dele uma imagem que pouco ou nada tem a ver com a descrição fria e burocrática dos sucessivos graus que o levaram ao topo da carreira e das actividades científicas e pedagógicas que desenvolveu ao longo da vida na área da Oncologia. O que ele nos deixou como recordação e que ficará na nossa memória é a sua atitude e o seu comportamento como pessoa e como médico, ou seja, o seu “currículo escondido”.

Ainda estou a vê-lo amável, sorridente, sem pressas, sempre que, como colega ou como director de serviço, eu lhe pedia um conselho ou solicitava uma informação, mesmo quando à sua frente se acumulava um monte de fichas que anunciava uma pesada jornada de trabalho. A sua expressão nunca mudava, nem transmitia qualquer sinal de enfado, de mal-estar ou de crispação. Era como se tivesse, para mim, todo o tempo do mundo. Como se, ser prestável a alguém, fosse para ele uma prioridade.

Contudo, era na relação com os doentes que as qualidades humanas de Costa Marques se revelavam de uma forma mais expressiva. Todos sabemos que a relação médico-doente é diferente de todas as outras, porque é feita de confiança mútua, empatia, sigilo profissional e ética. Sem disponibilidade para ouvir o outro, sem partilha e sem compaixão, a medicina perde parte da sua identidade e da sua eficácia. Mas a presença destes componentes define um “ideal platónico” de que todos, uns mais outros menos, procuram aproximar-se no decurso de uma actividade exigente que coloca inúmeros desafios. O excesso de trabalho, os horários rígidos, as exigências burocráticas, as pressões da administração e, mais recentemente, o computador, constituem obstáculos que roubam espaço aos doentes: às suas dúvidas, às suas ansiedades, aos seus medos, ou simplesmente, ao seu desejo de atenção e empatia.

Foi neste aspecto que Costa Marques constituiu um caso exemplar. Sempre com disponibilidade total, usava as palavras e os silêncios com bom senso e, sem deixar nunca transparecer qualquer sinal de impaciência ou de contrariedade, confortava, explicava e transmitia confiança. Mergulhado na sua actividade, esquecia-se de tudo, incluindo a hora das refeições ou os compromissos privados e colocava sempre, em primeiro lugar, os doentes de quem, talvez pela sua atitude de proximidade, conhecia de cor e em pormenor a situação clínica.

Costa Marques – quero aqui dizer de forma enfática e sem ambiguidades – foi talvez quem conheci que mais se aproximou, na prática clínica, da forma ideal da relação médico-doente. Por isso, será recordado durante muito tempo pelos seus colegas e, sobretudo, pelos seus doentes. Também por isso, merece ser apontado como exemplo aos mais jovens, numa altura em que as tecnologias, os interesses e a burocracia estão a provocar a erosão da medicina clínica e a privá-la cada vez mais do que ela tem de singularidade e de grandeza.

Barros Veloso
(27-7-2019)