Os Internistas no Serviço de Urgência são a garantia de segurança dos doentes
A Direção do Colégio da Competência em Emergência Médica divulgou, via Facebook, a 27 de maio de 2019, ter proposto formalmente à Ordem dos Médicos a criação da Especialidade de Urgência. Declara também que com esta proposta está a “seguir o caminho dos nossos parceiros europeus” e que com ela o país poderá contar com “profissionais especificamente formados para atuarem em variadíssimos cenários, desde a Medicina de Urgência em meio rural, a urgências altamente diferenciadas, em meios pré-hospitalares e em situação de catástrofe”.
As urgências dos hospitais sofrem as disfunções do sistema de saúde, em que tudo lá chega, desde o doente grave ao não grave, até ao caso social puro, por ser a porta que nunca está fechada. Por isso, se não houver mudanças reais, em que cada entidade tenha de assumir as responsabilidades inerentes à sua missão natural (Centros de Saúde, Hospitais, Segurança Social), os Serviços de Urgência continuarão superlotados, com tempos de espera inaceitáveis. Mas as alterações estruturais são difíceis e levam tempo, embora saibamos que vale a pena fazê-las, porque são as que perduram e que resultam num ganho de eficiência. Por isso, sabemos que é tentador para o poder político, que cada vez mais cultiva o efeito imediato, fazer a cosmética das urgências, acrescentando-lhes mais espaço físico e batas brancas. Para a Ordem dos Médicos, a eventual criação da Especialidade de Urgência também seria uma forma de arranjar colocação para as várias centenas de médicos sem lugar no internato depois do exame de acesso às especialidades.
Arrisco-me a ser inconveniente, uma vez mais, ao afirmar que ter agora “Urgencistas” em Portugal seria um enorme erro e tal só deveria acontecer depois de serem operadas transformações significativas no sistema de saúde.
Em primeiro lugar, há que distinguir a Urgência da Emergência, e não tomar como certas as afirmações veiculadas por quem só tem experiência desta última. Segundo os dados de 2018 divulgados pelo Ministério da Saúde, foi batido o recorde de episódios de urgência (6.36 milhões), dos quais apenas foi dada prioridade laranja a 600 mil e vermelha a 20.500. Cerca de 40 por cento dos atendimentos (2.2 milhões), foram classificados como pouco ou nada urgentes (pulseira verde ou azul) pela Triagem de Manchester. A 42,7 por cento dos recursos ao Serviço de Urgência (2.6 milhões) foi dada a prioridade amarela, onde reside a maior área de incerteza acerca da real gravidade clínica, sendo geralmente aceite que 40 por cento destes doentes não são graves, após observação médica.
Também é muito importante ter a consciência de que a urgência em Portugal é muito diferente de toda a Europa, em que a média de recursos ao Serviço de Urgência é menos de metade, pelo que as nossas soluções não podem ser as mesmas. Nos países onde foi criada esta especialidade, o Serviço de Urgência de um hospital central tem menos de 100 ingressos por dia, sendo essencialmente casos de trauma, cirurgia ou situações de emergência. Em Portugal, temos cerca de 500 recursos por dia, essencialmente de doentes agudos médicos, graves e não graves, em que apenas 10 por cento foram antes observados por um médico.
Outro aspeto, que distingue Portugal dos restantes países europeus, é o facto de mais de 90 por cento dos internamentos hospitalares serem feitos através do Serviço de Urgência, pelo que é fundamental a presença, na Urgência, de médicos dos Serviços de Internamento, como a melhor forma de garantir a continuidade e a qualidade assistencial.
Por último, o médico “Urgencista” entraria em exaustão em poucos anos, pelo que um modelo de “carreira” dificilmente poderia perdurar no tempo. O presumível “Urgencista” ganharia o hábito de tratar o doente agudo por algoritmos, o que, tendo vantagens reconhecidas na verdadeira emergência, seria muito redutor para a nossa Urgência médica, em que é fundamental manter a capacidade de aprofundar o raciocínio clínico, uma vez que 90 por cento dos doentes não têm qualquer observação médica antes do recurso ao Serviço de Urgência.
Também consideramos que o diálogo é bom, desde que seja isento de mistificações, resistente aos facilitismos e não tenha propósitos de ordem corporativa. Enquanto o quadro for o que antes descrevi, ter os Internistas como responsáveis do doente médico no Serviço de Urgência é uma questão de segurança básica, que os doentes informados agradecem.
Artigo de Opinião de João Araújo Correia, presidente da SPMI.
Publicado no Público a 4 de julho de 2019.