O exercício de medicina pública ou privada e a exclusividade dos médicos
A exclusividade dos médicos não garante por si só o aumento da produtividade, mas assegura uma capacidade muito apreciada por qualquer diretor de serviço: a disponibilidade!
Desde há cerca de dois meses que o regime de exclusividade do trabalho médico voltou a ser falado. Quem primeiro foi buscar o assunto ao baú das memórias foi a ministra da Saúde, Marta Temido, que afirmou, durante alguns dias, defender o regime de exclusividade dos médicos, como forma de compensar a carência de especialistas nos hospitais públicos. Depois, o ministro das Finanças, que percebe de quase tudo, mandou dizer que não estava provado o aumento da produtividade com a exclusividade dos médicos, e que essa medida era despesista. Com isto, a ministra calou-se. A Ordem dos Médicos disse que sim, não e talvez, na mesma frase, dedicada a este assunto incómodo. No jornal Expresso de 10 de julho, José Miguel Boquinhas não teve dúvidas em arrasar o regime de exclusividade, não lhe reconhecendo qualquer virtude, juntando-se a Mário Centeno, considerando-o uma despesa escusada.
Deve-se a Leonor Beleza, então ministra da Saúde, a instituição do regime de exclusividade dos médicos. A ideia era a progressiva separação do exercício da medicina pública e privada, como acontece na maioria dos países europeus. Para além disso, esperava-se dos médicos em exclusividade uma maior dedicação, pelo que lhes seriam reservados os cargos de direção dos serviços e departamentos. Por acreditar em absoluto nestes conceitos, após ter exercido medicina privada em acumulação durante cinco anos, assinei um contrato de exclusividade de 42 horas semanais no hospital, que ainda mantenho. Infelizmente, a execução da lei do regime de exclusividade foi desastrosa! A adesão era voluntária, mas tinha de ser concedida sempre que era requerida. Quando o Ministério da Saúde contava com uma baixa adesão, 70% dos especialistas de Medicina Geral e Familiar e 30% dos especialistas no hospital requereram a exclusividade. Dados os constrangimentos físicos dos centros de saúde, não aumentaram as consultas, nem a disponibilidade dos clínicos, ficando ainda mais comprometida na província a assistência à doença aguda ligeira, antes assegurada por visita médica, em regime privado. Nos hospitais não houve qualquer restrição à adesão ao regime de exclusividade de médicos em pré-reforma e daqueles já conhecidos por pouco trabalharem nos seus serviços e que já não exerciam qualquer atividade privada. Desta forma, sem qualquer mecanismo de controlo na aplicação da lei da exclusividade do trabalho médico, foram desvirtuados os bons princípios que a inspirava, que ninguém sério, conhecedor do sistema de saúde, poderá contestar.
A exclusividade dos médicos não garante por si só o aumento da produtividade, mas assegura uma capacidade muito apreciada por qualquer diretor de serviço: a disponibilidade! São muitas as dificuldades na gestão de um serviço, em que os especialistas trabalham em locais diversos, com horários de trabalho díspares. Deveria ser extinta a lei que não permite a contratação de especialistas do próprio hospital como tarefeiros, que é profundamente injusta e só aumenta custos, com redução da qualidade assistencial. Seria aos médicos em exclusividade, naturalmente mais disponíveis, que se poderiam pedir tarefas suplementares, em períodos de crise. A exclusividade deveria ser uma possibilidade e não um direito adquirido, sendo o candidato sujeito a um rigoroso processo de avaliação. Para mim é claro que a exclusividade teria de ser exigida para o exercício dos cargos de direção dos serviços ou departamentos, como já o é para os membros dos conselhos de administração.
Em Portugal há lugar para a medicina pública e privada, mas temos de reconhecer a existência de uma enorme confusão das responsabilidades de cada uma. Aqui, a medicina privada é regida pelos plafonds dos seguros e pelos procedimentos sem complicações. Se as coisas correm mal, o doente é transferido para o hospital público, sem qualquer rebuço. Até pode acontecer que lá vá encontrar o mesmo médico, que divide o seu tempo nos dois lados. Melhor assim, que ninguém põe problemas! O sistema de saúde ideal deveria obrigar a escolha do utente pela medicina pública ou privada, assumindo cada um dos sistemas o pagamento ao outro dos exames ou procedimentos que não fosse capaz de realizar.
É preciso valorizar a discussão interpares e as reuniões clínicas dos serviços, quase impossíveis de concretizar pela ausência da maior parte dos especialistas, devido às múltiplas tarefas em que estão envolvidos, pelo número de horas dadas ao serviço de urgência (18 horas nas 40 horas semanais), ou porque se tem de ir trabalhar para outro hospital. Em Medicina Interna, que é uma especialidade caraterizada pelo estudo e tratamento do doente complexo, em que o raciocínio clínico é o grande instrumento de trabalho, o tempo dedicado à enfermaria tem um valor precioso. Não é possível fazer medicina de alto valor com a dispersão e a pressa constantes de dever estar noutro lugar.
Não sei se a boa qualidade dos cuidados de saúde prestados, que é uma forte motivação para os médicos, dá alguns votos nas eleições. Por vezes é ingrato saber que só vê o que está errado quem está dentro do sistema. Os políticos acenam com números de consultas, de cirurgias, de internamentos e de listas de espera. Mas o bom exercício da medicina pública ou privada está para além desses números. Se tivermos atenção e auditarmos os resultados com seriedade, veremos que a dedicação é um valor a preservar, que redunda em melhores cuidados de saúde, e que é mais fácil consegui-la quando não nos dispersamos e nos focamos apenas numa coisa.
Artigo de opinião de João Araújo Correia, presidente da SPMI, publicado no jornal Público a 18 de setembro de 2019 em: https://www.publico.pt/2019/09/18/sociedade/opiniao/exercicio-medicina-publica-privada-exclusividade-medicos-1886948