Novo Coronavírus provoca epidemia com desfecho imprevisível
Desde o início da década de setenta do século XX que se sabe que os Coronavírus são responsáveis por uma grande variedade de doenças em animais domésticos, a grande maioria provocando sintomas gastrintestinais agudos, como enterites e gastrenterites, e alguns causando doença respiratória, doença do fígado e do cérebro mas, até ao início do século XXI, nunca lhes foi dada grande atenção como causadores de doença em humanos.
O primeiro Coronavírus humano foi isolado no ano de 1965, numa amostra de secreções nasais dum doente com um resfriado comum, infecção aguda das vias aéreas superiores (VAS). Até hoje estão descritas sete estirpes diferentes de Coronavírus que provocam doença no ser humano, incluindo o novo Coronavírus 2019 (2019-nCoV), responsável pela actual epidemia que teve origem num mercado grossista de peixe em Wuhan, cidade da província de Hubei na China, em meados de dezembro de 2019. Quatro destas estirpes estão bem adaptadas aos humanos, não é conhecido nenhum reservatório animal delas, e provocam praticamente sempre uma doença ligeira das VAS que não exige tratamento específico e que se caracteriza pela presença de secreções nasais, mal estar, dores de garganta, dores de cabeça, espirros e febre. Muito raramente podem causar dificuldade respiratória e pneumonia.
Desde o início do século XXI três novos Coronavírus, vindos de reservatórios animais, provocaram pela primeira vez doenças graves e com elevadas taxas de mortalidade em humanos. Duas destas doenças constituíram epidemias globais. Em 2002 um surto de pneumonia grave, conhecida por síndrome respiratória aguda grave (SARS em inglês) teve origem na província de Guangdong na China e espalhou-se por mais de duas dúzias de países através da circulação internacional de pessoas. Este surto foi provocado por um Coronavírus, designado por SARS-CoV, cujo reservatório animal é o morcego. A transmissão do animal para o homem parece ser esporádica, não tendo voltado a ocorrer após este surto, mas a transmissão rápida e sustentada de pessoa a pessoa foi confirmada, sobretudo nos hospitais onde os doentes recorreram, não estando ainda esclarecida a forma como ela ocorre. A gravidade da doença levou a que 20 a 30% dos doentes tivessem que ser submetidos a ventilação mecânica por insuficiência respiratória aguda e cerca de 10% morreram. Foram confirmados 8.098 diagnósticos de SARS em 2002 – 2003, 5.327 na China. Medidas de saúde pública, implementadas a nível global, controlaram e eliminaram rapidamente a SARS. Em 2012 um novo Coronavírus, o MERS-CoV, foi identificado num doente saudita que morreu por insuficiência respiratória aguda provocada por uma doença então designada por Síndrome Respiratória Aguda do Médio Oriente (MERS em inglês). O reservatório animal do MERS-CoV também é o morcego, mas o hospedeiro intermédio que o transmite ao homem foi identificado, é o camelo. A MERS caracteriza-se por transmissões esporádicas e autolimitadas animal-homem e por cadeias de transmissão pessoa a pessoa curtas e geograficamente localizadas, provocando pequenos surtos dentro dos hospitais, em alguns casos devidos a um único disseminador. A MERS ainda não foi eliminada e até novembro de 2019 diagnosticaram-se 2.494 casos, a maioria na Arábia Saudita, e cerca de 34% dos doentes morreram.
Em 31 de Dezembro de 2019 as autoridades chinesas reportaram um conjunto de casos de pneumonia grave em Wuhan e em 10 de janeiro de 2020, investigadores do Centro Clínico de Saúde Pública e da Escola de Saúde Pública de Xangai, registaram a sequência genómica do 2019-nCoV nas bases de dados de saúde pública. O 2019-nCoV transmite-se de pessoa a pessoa e, segundo os dados epidemiológicos conhecidos, um doente contagia em média 2,2 pessoas (5 doentes contagiam 11 pessoas diferentes), uma taxa de contagiosidade inferior à verificada na SARS, em que cada doente contagiava em média 3 pessoas. Os principais transmissores da doença são os doentes com sintomas de infecção que, provavelmente, disseminam o vírus através da tosse e dos espirros, mas estão descritos casos que desconhecem contactos prévios com pessoas sintomáticas. A taxa de transmissão da doença ao pessoal de saúde parece ser inferior que a que foi verificada na SARS e a que se verifica na MERS. Até hoje já foram diagnosticados 14.411 casos nas 33 províncias da China, cerca de 15% considerados graves. Fora da China estão diagnosticados 146 casos em 23 países, números actualizados diariamente pela OMS. Em Portugal ainda não foi ainda confirmado nenhum caso. O 2019-nCoV provoca uma doença semelhante à SARS, mas talvez menos grave, com cerca de metade dos casos a ocorrer em indivíduos acima dos 60 anos e com poucos diagnósticos em crianças e em jovens. Na fase inicial do surto cerca de 89% dos doentes não estavam internados no quinto dia de doença, o que significa que provavelmente existe uma percentagem elevada de pessoas infectadas com poucos ou nenhuns sintomas. A taxa de mortalidade parece ser significativamente mais baixa que na SARS, não atingindo os 3% com os números que são conhecidos até à data e a maioria dos doentes que morrem são idosos ou têm doenças crónicas. Não se conhecendo ainda como se processa a transmissão directa pessoa a pessoa, se por contacto directo (aperto de mão, abraço, beijo) ou por gotículas ou aerossóis (espirros, tosse), não são ainda conhecidas as medidas mais adequadas para evitar o contágio. Assim recomenda-se que todos os doentes com suspeita de infecção ou com infecção confirmada coloque uma máscara que cubra o naríz e a boca e sejam colocados em isolamento, e que o pessoal de saúde que tenha que contactar com eles utilizem o equipamento de protecção individual conforme recomendado pela DGS. As pessoas que estiveram em contacto directo com doentes infectados, ou com doentes em quem o diagnóstico se confirmou mais tarde, estão em risco de desenvolver a doença num espaço de tempo que pode ir até aos 14 dias depois do último contacto. Não estando garantido que o vírus não se transmite numa fase inicial de infecção, com poucos ou nenhuns sintomas, as pessoas que viajaram da China, sobretudo da província de Hubei, também estão em risco de desenvolverem sintomas de doença nos 14 dias seguintes ao último dia de permanência. As pessoas que estão nestas duas situações devem evitar o contacto próximo com outras pessoas durante os 14 dias do período de incubação da doença e devem andar de máscara e evitarem a emissão de aerossóis quando tossem e quando espirram, colocando o antebraço à frente da boca e do nariz. Idealmente deveriam permanecer em isolamento neste espaço de tempo. As viagens à China devem ser evitadas e, a pessoas que viajarem devem evitar contacto com doentes ou pessoas com sintomas respiratórios, com animais vivos ou mortos e com carne e outros produtos de animais mortos, uma vez que não se sabe se a transmissão do animal para o homem foi esporádica ou se continua a ocorrer.
Esta doença pode provocar uma catástrofe mundial. O estudo das suas características e do seu comportamento no futuro irá fornecer dados importantes para melhorar o seu controlo. Talvez seja possível dentro de 3 ou 4 meses ter disponível uma vacina para ajudar a atingir este objectivo. Por enquanto, o mais importante para evitar, ou pelo menos, diminuir a sua propagação é estar atentos e cumprir as recomendações que vão sendo emitidas pela OMS, pela DGS e pelos serviços de saúde mais próximos. As medidas de saúde pública implementadas vão conter a disseminação da doença, mas os próximos tempos são muito importantes para conhecermos a sua capacidade de disseminação e persistência na espécie humana.
Artigo de opinião de Alfredo Martins, Internista e Coordenador do NEDResp
(03/02/2020)