Eutanásia no país do faz-de-conta

Estamos prestes a ter a eutanásia em Portugal, plasmada em lei, votada favoravelmente na Assembleia da República. A coisa aparece nas manchetes de revistas e jornais, como uma conquista. Compara-se isto com a lei do aborto e, como nessa altura, espicaçam-nos com a necessidade de andarmos depressa. Não podemos atrasar-nos em relação às sociedades avançadas da Europa.

Fico admirado com as certezas das convicções, que todos exibem sobre este assunto. Quem é a favor ou quem é contra, está munido de argumentos fortes e contundentes. Os políticos, as personalidades públicas e os meus colegas médicos, têm a sua estratégia argumentaria baseada no valor intangível da liberdade individual, que lhe dá o direito de decidir o seu próprio destino, ou aquele que é intrínseco á vida.

Sinto-me algo constrangido pelas dúvidas que me assolam, como cidadão Português e como Médico. Talvez devesse não ter tantas, quando me garantem que a eutanásia é uma decisão individual, de uma pessoa capaz, que padece de uma doença incurável, que lhe dá sofrimento significativo, sendo o declínio progressivo e inexorável.

Sempre vi a eutanásia como conquista civilizacional. É uma afirmação do indivíduo, culto e informado, sem amarras a quaisquer crenças, religiosas ou ideológicas. Devo ter sido influenciado pelo facto dos Países onde foi aplicada serem baluartes da cultura e das conquistas sociais, com um invejável nível económico das suas populações. Com isto assegurado, acho que é possível ter uma consciência mais clara das razões para continuar a viver, ou decidir pôr um ponto final a tudo.

Amo o meu País, mas, já não é a primeira vez, que digo ser o “País do faz de conta”. Na teoria, temos uma cobertura nacional das Redes de Cuidados Paliativos e de Cuidados Continuados, há lares da Segurança Social para responderem aos nossos velhos frágeis e até temos uma linha de Emergência Social, capaz de responder a qualquer imponderável. Na realidade, os doentes permanecem nas camas dos hospitais mais de dois meses até serem integrados nas redes, com enormes assimetrias no território nacional. Quanto aos lares da Segurança Social, tenho vergonha de vos confessar, que nos serviços hospitalares a espera é superior a 12 meses! A Emergência Social é uma miragem, que se resume a um número de telefone, a que os Serviços de Urgência recorrem nos casos sociais puros. Não tem quaisquer meios de resposta, para além da simpatia solidária dos técnicos, que atendem as chamadas.

Será que há liberdade individual e verdadeira capacidade de decisão, com carências sociais básicas, sem lares ou casas decentes, com reformas miseráveis, muitas vezes na decrepitude e solidão absolutas? Será honesto que o Estado providencie um serviço de morte, sem garantir Cuidados Paliativos generalizados pelo País, que só excecionalmente não conseguem aliviar o sofrimento?

Também é importante referir, que os Cuidados Paliativos evoluíram no seu âmbito de atuação, tendo agora um papel muito importante na doença crónica, muitas vezes não oncológica, com grande prolongamento do tempo de vida, sem sofrimento. Os meios terapêuticos existentes, nesta área em que os médicos continuam a cuidar dos doentes, mas a cura já não é possível, estão longe de ser bem conhecidos, mesmo de muitos profissionais de saúde. Será sempre obrigatório garantir o acesso a um especialista com a competência em Cuidados Paliativos, para uma eventual opção tão radical como a Eutanásia.

Discutir a Eutanásia sem cuidar de resolver esses problemas estruturais, é tapar o sol com a peneira! É optar pelo caminho mais fácil, porventura mais barato, de não investir em setores chave do Sistema Nacional de Saúde e da Segurança Social, que são determinantes para uma decisão responsável.

Não queiramos ter uma lei da Eutanásia, que permita a um velho doente, abandonado no Hospital, ter essa opção, para deixar de ser um problema. A pressão para que isso aconteça pode ser bem real, a bem da eficiência… Quem tenha dúvidas, basta vir conhecer os dramas que todos os dias vemos passar no Serviço de Urgência ou nos Serviços de Medicina Interna.

Mas, para além da decisão do indivíduo, que posso respeitar depois de garantidos os pressupostos referidos, não entenderei nunca como Médico a obrigação de colaborar no próprio ato. Serei um objetor ativo, pelos princípios hipocráticos da minha profissão e porque estou ciente de que há sempre algo que poderei fazer, para que o doente encontre a sua paz, sem lhe antecipar a morte.

Artigo de opinião de João Araújo Correia, Internista e Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

(18/02/2020) publico.pt