Doentes separados à porta das Urgências

Doentes separados à porta das Urgências

Peritos defendem que os casos sem gravidade, azuis e verdes, sejam vistos em postos de atendimento fora dos hospitais e enviados para os centros de saúde

Com a chegada do outono e o aumento do número de doentes, especialistas de medicina interna e de medicina familiar vão recomendar ao Governo medidas para restringir as admissões nas Urgências dos hospitais aos verdadeiros casos SOS. As alterações no atendimento à população visam evitar as indesejáveis mas habituais enchentes no inverno e o desperdício de recursos durante todo o ano.

O documento, em preparação e a que o Expresso teve acesso, redesenha a entrada nos hospitais com a criação de caminhos alternativos. Aos doentes serão abertas mais portas para que às Urgências cheguem apenas aqueles que de facto precisam dos cuidados mais especializados disponíveis no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Há propostas para avançar já face à proximidade do inverno e outras para ir fazendo à medida do possível. Os médicos querem é que seja feita alguma coisa. “Já não suporto a hipocrisia. É um drama: daqui a algumas semanas, quando a Urgência estiver com seis horas de espera, vou receber novamente uma convocatória do meu conselho de administração para uma reunião de emergência como se o problema fosse novo”, critica um dos promotores do documento e presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, João Araújo Correia.

A medida prioritária é a criação de postos de atendimento adjacentes às Urgências, fora deste serviço, com médicos hospitalares e de família para atenderem os doentes e garantir que só os urgentes entram na área SOS. A regra impede o acesso dos casos ligeiros à Urgência — separando amigdalites de enfartes, por exemplo —, mantém o acesso direto a exames complexos se for necessário e dá a resposta que os centros de saúde ainda não asseguram, seja por falta de médicos ou de meios complementares de diagnóstico.

URGÊNCIAS PORTUGUESAS BATEM TODOS OS RECORDES

O novo circuito será para ficar. “Temos de mudar mentalidades e restabelecer a confiança nos cuidados primários e isso não se faz só quando há gripe. O Hospital Central de Paris tem 60 a 70 admissões diárias na Urgência. Nós temos 500, com 40% a 50% de falsos episódios, o dobro de qualquer outro país europeu, e vai ser incomportável com o aumento da população idosa, em que uma pessoa traz várias doenças”, alerta o também diretor do Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar do Porto. “As pessoas convenceram-se de que só o hospital pode responder e foi-se aumentando a Urgência, às vezes só com batas brancas de capacidade duvidosa.”

Separados os doentes por gravidade de diagnóstico, deverão também os gestores hospitalares receber valores distintos: menos pelos casos ligeiros e mais pelos graves. “Há uma hipocrisia no modelo atual. Os hospitais querem manter os doentes azuis e verdes dentro da Urgência porque recebem o mesmo valor que é pago pelos laranjas ou vermelhos e, na verdade, saem mais baratos porque são fáceis de tratar”, explica João Araújo Correia.

Os montantes poupados na rede hospitalar devem depois chegar aos centros de saúde para que reforcem a resposta. Segundo os responsáveis da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, além de médicos, enfermeiros e equipamentos para exames faltam, por exemplo, 200 telefonistas para atender os utentes.

E para levar quem adoece subitamente a iniciar o circuito pelos cuidados primários e não pelo hospital, ou no futuro pelos postos de atendimento, os peritos afirmam que é preciso mudar também a publicidade à linha Saúde 24. “Um dos maiores mitos é a Saúde 24. Diz responder a muitos telefonemas mas não se sabe quantas idas à Urgência foram evitadas. Basta a pessoa dizer que tem febre ou uma dor qualquer e a resposta é logo para ir ao hospital”, afirma João Araújo Correia. “Não se substitui a observação clínica, feita por um médico, por um telefonema. Todos os invernos, a mensagem devia ser ‘vá ao médico de família’ em vez de ‘telefone para a Saúde 24”.

No documento constam ainda propostas de alterações nas consultas de especialidade e nos Hospitais de Dia para melhorar a reposta aos doentes crónicos. No caso, “soluções alternativas à Urgência, como Hospitais de Dia com horário alargado para as exacerbações das doenças crónicas, consultas abertas sem agendamento e Centros de Diagnóstico Rápido”.

DOENTES CRÓNICOS COM NOVOS SERVIÇOS

“Há sempre um conjunto de doentes não muito agudos e que não precisam de internamento mas que têm de ter um diagnóstico rápido, como os doentes com doença pulmonar obstrutiva crónica ou insuficiência cardíaca que descompensam. Estes podem entrar nos Hospitais de Dia — com horário alargado, médicos e enfermeiros — e fazer medicação e estabilização”, explica o médico. E em 2019 haverá já uma experiência no seu hospital, o Santo António, no Porto.

Outra solução está também pensada para os doentes que precisam rapidamente de uma consulta de especialidade. Segundo os peritos, os hospitais devem ter médicos para receber quem não tem marcação — como já acontece nos centros de saúde para os utentes sem médico de família atribuído, por exemplo —, com a possibilidade de recorrer a alguns exames quando há necessidade de resultados rápidos. Aliás, é à procura desta resposta que muitos dos doentes sem gravidade recorrem à Urgência. Os peritos explicam que os futuros Centros de Diagnóstico Rápido devem funcionar, sobretudo, ligados às consultas de especialidade com mais procura.

A estratégia que será enviada à tutela do SNS é faseada e depende de recursos que os autores do documento reconhecem que terão de ser reforçados. O esforço é grande mas garantem que não há outro remédio. Ou seja, o Governo terá primeiro de investir para depois poder poupar e, mais importante, garantir que o SNS consegue dar resposta a uma população mais envelhecida e carente de cuidados complexos.

PROCURA

500
doentes é a média diária de admissões nas Urgências dos principais hospitais públicos portugueses. O número é o dobro dos indicadores registados em qualquer outro país europeu
40%
a 50% dos casos tratados nas áreas SOS do Serviço Nacional de Saúde não são urgentes. São doentes ligeiros, triados com as cores verde ou azul, que não carecem de assistência médica altamente especializada

Consulte o artigo aqui.

(28/10/2018)