Doenças raras (mas nem tanto): Uma em cada 20 pessoas nasce com uma e pode demorar 30 anos até saber
O primeiro dia das doenças raras foi comemorado em 2008, no dia 29 de fevereiro. O dia foi escolhido pela EURORDIS – Rare Diseases Europe, exatamente por ser um dia raro e diferente de todos os outros – assinala-se apenas de 4/4 anos, em anos bissextos. Desde então, o Dia Mundial das Doenças Raras, comemora-se no último dia do mês de fevereiro. Já são mais de 80 os países que o comemoram, pretendendo-se alertar a população em geral, mas também os diferentes organismos, autoridades públicas, decisores políticos, representantes da indústria farmacêutica, investigadores, profissionais de saúde, da área social e da educação, entre outros, para estas doenças e para as dificuldades que os doentes e famílias enfrentam no seu quotidiano.
Mas porque é tão importante divulgar e alertar para existência destas doenças?
Quando pensamos em doenças raras, pensamos em doenças que afetam menos de 1 em cada 2000 pessoas (definição utilizada na União Europeia e em Portugal).
A probabilidade de termos uma destas doenças parece reduzida, mas existem mais de 7 mil doenças raras já descritas (e todas as semanas novas doenças são descobertas), estimando-se que afetem 6 a 8% da população. Assim, no nosso país acreditamos que existam entre 600 a 800 mil doentes, na Europa 30 milhões e a nível mundial 350 milhões.
Na verdade, se os doentes raros se juntassem e formassem um único país, este seria o terceiro país mais populoso do mundo, logo a seguir à China e à Índia e com mais população que os EUA. Se pensarmos bem nestes números, a verdade é que 1 em cada 20 pessoas no mundo irá viver com uma doença rara num dado momento da sua vida.
E o que precisamos saber sobre as doenças raras?
As doenças raras partilham algumas características para além da sua raridade. Sabemos que 80% são de origem genética, sendo que as restantes resultam de infeções (bacterianas ou virais), alergias e condições de origem ambiental. São habitualmente doenças crónicas, graves e progressivas, muitas vezes degenerativas e não raras vezes colocam em risco a vida do doente.
Sabemos que aproximadamente 50% surgem em crianças e destas, 30% morrem antes dos 5 anos de idade. São doenças incapacitantes, condicionando diferentes níveis de dependência/ perda de autonomia, em que a qualidade de vida (do doente e da sua família/ cuidadores) muitas vezes é comprometida. Partilham também uma ampla diversidade de sinais e sintomas, que podem ser perfeitamente evidentes à nascença ou surgir apenas em fases mais tardias da vida, e que variam não só de doença para doença, mas também de doente para doente dentro da mesma doença.
A obtenção de um diagnóstico correto é assim frequentemente um processo intrincado e longo e a nossa capacidade de confirmação diagnóstica (laboratorial) está disponível em apenas 3600 destas doenças. Em Portugal, 25% dos doentes espera entre 5 a 30 anos pelo diagnóstico definitivo após o aparecimento dos primeiros sinais da doença.
Apesar da grandeza de todos os números associados às doenças raras, não existem ainda tratamentos curativos (ou mesmo modificadores de doença) para a esmagadora maioria. De acordo com a Comissão Europeia, 95% das doenças raras não apresentam ainda terapêuticas disponíveis. O desenvolvimento de medicamentos, designados órfãos, destinados às doenças raras, um processo em tudo desafiante, apresenta-se assim como uma prioridade de Saúde Pública no quadro atual da União Europeia. Neste momento, apenas 142 medicamentos órfãos têm autorização comercialização na União Europeia e em Portugal tratamos de forma efetiva e racional cerca de 50 destas doenças.
E qual o contexto atual no nosso país?
Em Portugal, estas doenças estão abrangidas por uma Estratégia Integrada para as doenças raras, em implementação desde 2015, através de uma abordagem integrada dos Ministérios da Saúde, Segurança Social e Educação, que tem como missão desenvolver e melhorar coordenação dos cuidados, o acesso ao diagnóstico precoce, o acesso ao tratamento, a informação clínica e epidemiológica, a investigação e a inclusão social e a cidadania.
Do ponto de vista da saúde, o estabelecimento de uma rede de referenciação eficaz e a consolidação de centros de referência que prestem cuidados diferenciados e de elevada especialização e em integração em redes de conhecimento europeias (ERN – European Reference Network), está em curso e estão já designados vários centros no nosso País, com capacidade para diagnosticar e tratar 9 grupos diferentes de doenças raras. As normas de referenciação foram estabelecidas pela Direção Geral da Saúde e encontram-se publicadas e em divulgação. Complementarmente, esta estratégia contempla também a otimização e acessibilidade a cuidados de proximidade, a articulação adequada dos cuidados, o desenvolvimento da hospitalização e terapêuticas domiciliárias, a prestação de cuidados continuados apropriados a estas patologias.
De não esquecer que o trabalho desenvolvido no âmbito do apoio ao cuidador, da capacitação do doente no processo da decisão e em literacia em saúde da população em geral, tem desempenhado também um papel fundamental em todo este processo. Para tal, a colaboração dos doentes e das associações de doentes tem sido de extrema importância na partilha de experiência e na disseminação da informação, em todo este processo.
O que mudou com a pandemia da COVID-19?
Neste momento singular que vivemos, em que praticamente acordamos e dormimos a ouvir notícias sobre a pandemia de coronavírus, também este grupo especial das doenças raras (doentes, cuidadores, profissionais) teve e tem de se reinventar todos os dias para continuar a sobreviver. Não são apenas as dificuldades nas consultas, nos procedimentos, nos exames complementares, mas também muitas vezes a dispensa e a realização de terapêuticas. A reinvenção de procedimentos, o apoio da telemedicina, a readaptação de circuitos, têm sido imprescindíveis e muitos encontram-se em discussão e atual desenvolvimento.
Para concluir, é importante que estas doenças, que se revestem não raras vezes de elevada complexidade e são um desafio a diferentes níveis, quer pela ausência de conhecimento da fisiopatologia da doença, de normas clínicas bem definidas ou da ausência de tratamentos, não sejam esquecidas. E que, apesar da inexistência de cura efetiva para a maioria, não nos esqueçamos que muito se pode fazer para colmatar o nível de sofrimento, utilizando a medicina ao nosso dispor para tratar sintomas e restituir qualidade e esperança de vida.
Por isso, e apesar do raro momento em que vivemos, celebremos o mês de fevereiro e divulguemos as doenças raras.
Um artigo da médica Luísa Pereira, internista e paliativista do Hospital CUF Tejo e coordenadora adjunta do Núcleo de Estudos de Doenças Raras da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.
(26/02/2021)