Dia da Mulher, dia de Igualdade
As efemérides e dias consagrados a um tema têm o propósito de nos recordar o caminho percorrido pelos nossos antecessores e fazerem-nos olhar para o futuro de forma mais esclarecida. O Dia da Mulher é essencialmente um dia de reflexão e, neste caso, o mote para analisar o caminho percorrido nas últimas décadas, pela Mulher na Medicina e em particular na especialidade médica hospitalar mais abrangente, a Medicina Interna.
A Medicina e as Mulheres mudaram muitíssimo em Portugal nas últimas décadas. Antes do 25 de Abril contavam-se os casos raros de médicas, e particularmente, internistas. Com a assinalável democratização do ensino básico e secundário e igualdade de oportunidades no acesso ao patamar seguinte, o número de jovens mulheres a entrar no ensino superior foi crescendo tanto, que já ultrapassa o de homens há muito. Na área da Medicina, em 1992, quando entrei na universidade, apenas numa escola médica nacional houve paridade, com predomínio de mulheres nas restantes. Começava a discussão de aplicação de cotas de acesso a Medicina para jovens do sexo masculino, o que nunca se veio a implementar. Vinte anos depois, é natural que os serviços médicos sejam maioritariamente constituídos por mulheres, com algumas diferenças entre áreas.
As especialidades tradicionalmente escolhidas por homens, como Ortopedia ou Urologia, já têm muitas internas e algumas especialistas, ainda que minoritárias. Especialidades como Medicina Geral e Familiar, Dermatologia, Pediatria e Medicina Interna, há muito que são a primeira escolha de mulheres. Debate-se há anos, a hierarquização das motivações das escolhas das especialidades médicas, pois não são todas iguais. As especialidades médicas hospitalares mais abrangentes, como Medicina Interna ou Pediatria, que abarcam o tratamento do doente agudo, desde a sala de emergência até ao ambulatório (consulta), em serviços assegurados 24h durante todo o ano, têm em si mesmas características causadoras de stress aos seus profissionais: o desgaste é maior e não pode deixar de haver preenchimento de escalas (as urgências e doentes graves internados são podem ser deixados para tratar “amanhã”), pelo que a escolha é sempre corajosa, tanto para mulheres como para homens. O que se exige é uma planificação rigorosa e condições laborais que tornem todos os médicos felizes, pois assim tratarão melhor os seus doentes e sentir-se-ão realizados. A almejada qualidade de vida deve incluir o tempo dedicado ao trabalho, que deve ser em geral prazeroso, ainda que por momentos possa ser monótono ou árduo.
Nos Estados Unidos da América mantém-se o debate sobre a discriminação no local de trabalho, diferenças de salário entre médicos e médicas, o tratamento diferente no meio académico, com publicações em revistas científicas médicas e com grupos privados nas redes sociais, confinados a mulheres, onde são tratados temas como condições laborais, legislação, maternidade e relação com os superiores hierárquicos. Tal é também actual em vários campos profissionais em Portugal, mas a organização do Serviço Nacional de Saúde, com o acesso igual, remuneração igual e condições de trabalho semelhantes, não têm sido entraves à realização profissional das médicas portuguesas e particularmente das internistas.
Outra reflexão que faço é a da percepção social do trabalho médico. Em publicações da américa do norte, continua a haver evidência de existir subvalorização do trabalho feito por médicas, em áreas tecnológicas ou de grande complexidade. Na área que melhor conheço, ainda se continua a notar, por parte dos doentes, o tratamento por Sr. Dr. ao interno acabado de chegar da faculdade e Menina Doutora a médicas especialistas há anos. Quanto de isto é negativo, ou quanto demonstra uma relação carinhosa e empática, é difícil de saber. O que asseguro é não ter sentido menos confiança no meu trabalho por parte dos doentes que assim me tratam.
Quanto à conciliação da vida familiar com a profissional, caminha-se para a paridade nas tarefas domésticas e, portanto, tal dever-se-á reflectir na disponibilidade para todas as outras actividades. Quanto à maternidade, não deveria ser adiada pela escolha desta profissão. Ainda é um acto corajoso a gravidez durante o internato médico, pois é um percurso
de imensa dedicação intelectual e física ao trabalho, entre os 25 e os 30 anos de idade. Mas, será justo pedir às médicas que adiem os seus projectos? As organizações, no planeamento dos seus recursos humanos, têm que ter este facto em mente: a maioria das mulheres quer ter filhos, algumas não; muitas vão ficar grávidas; umas querem estar o maior tempo possível de licença, outras o mínimo; umas vão querer amamentar, outras não, mas todas querem que tal seja encarado com a naturalidade de uma sociedade saudável.
Os cargos de gestão ainda agora estão dominados por homens, mas será uma questão de tempo e às vezes de vontade.
Neste dia, o que mais gostaria de comemorar é que a paridade não deve ser encarada como uma meta, mas como uma igualdade de oportunidades, em que cada um possa fazer as suas escolhas em total liberdade.
Artigo de opinião de Mafalda Santos, Médica Especialista em Medicina Interna
(05/03/2020)