Despedida da Urgência
Sinto que hoje morro um pouco. Até estas palavras soam a epitáfio! Desculpem o exagero, mas boa parte da minha vida, é dedicada ao exercício da medicina. E, a minha Medicina Interna sem Urgência, vai parecer um corpo decepado. Engordará, por falta de exercício!
A Urgência, tem pessoas demais, nem todas verdadeiramente doentes. Muitas vezes, desesperamo-nos com os atrasos das análises, do Rx ou da TAC, do medicamento que não chega, ou do pedido de transporte extraviado. É difícil aturar o reclamante, quase sempre o menos doente da sala. Quando pedimos uma maca ou uma cadeira de rodas, sem aparente resposta, perguntamo-nos o porquê de ainda estarmos ali, 36 anos passados, já sem obrigação de o fazer!
Cada um deve ter as suas próprias explicações. Eu, tenho as minhas.
Na Urgência, há ansiedade, cansaço físico extremo, por vezes medo de falhar ou de termos esquecido alguma coisa. Mas, não há tédio! Só se entedia na Urgência, quem pouco ou nada faz.
A Equipa, quando funciona coesa, com a verdadeira entreajuda entre as várias especialidades, apenas com a preocupação central de dar a melhor resposta ao doente grave, confere uma energia reforçada, pela sinergia gerado pelo grupo. O sentimento de pertença, em que a nossa força é maior, com a ajuda do outro, dá uma gratificação suprema!
Sendo o raciocínio clínico, na procura de um diagnóstico, uma das atividades mais estimulantes do médico, fazê-lo no contexto do Serviço de Urgência, é ainda mais desafiante. Aí, o tempo conta, e pode determinar o desfecho. De nada vale um diagnóstico certo atrasado, já com o doente agónico, ou com sequelas irreversíveis. A Urgência foi onde mais aprendi, com a maior satisfação profissional, pela certeza de que o meu trabalho tinha valido a pena, e pelos diagnósticos difíceis que tive a sorte de fazer!
O Serviço de Urgência, com todos os defeitos que possa ter, é o espelho do Hospital. E, os Serviços de Internamento, que não tenham os seus especialistas na Urgência, não tardam a definhar!
Tenho um sentimento de perda, mas sempre pensei que devemos sair, quando ainda podemos ser lembrados, como um exemplo razoável. Estou grato por este tempo inesquecível, salpicado de histórias irrepetíveis, sempre no fio da navalha!
Artigo de João Araújo Correia no Público
(30/12/20)