Anemia, fadiga e cansaço: os sinais “insuspeitos” da Doença de Gaucher
É uma doença grave, crónica, progressiva e multissistémica que pode apresentar um conjunto muito variado de sinais e sintomas comuns a outras doenças. Talvez nunca tenha ouvido falar na Doença de Gaucher, mas ela existe. Em Portugal existem 140 casos diagnosticados, no entanto, tendo em conta a dificuldade no seu diagnóstico acredita-se que muitos estejam ainda por identificar. No âmbito do Dia Mundial da Doença de Gaucher, o Atlas da Saúde esteve à conversa com a médica internista, Luísa Pereira, do Núcleo de Doenças Raras da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, para lhe dar a conhecer esta patologia.
O que é a Doença de Gaucher e quantas pessoas, em Portugal, sofrem da patologia?
A doença de Gaucher é uma doença hereditária, causada por uma deficiência numa enzima lisossomal (glucocerebrosidase), responsável pela degradação dum tipo de gordura, o glucocerebrosídeo, que se acumula dentro de células chamadas macrófagos, provocando a sua disfunção. Recebeu o nome de doença de Gaucher devido ao estudante de medicina francês que a descreveu pela primeira vez em 1882: Philippe Gaucher.
É rara, estimando-se uma incidência de 1:40.000 nados vivos, tornando-a a mais frequente do grupo das doenças de depósito lisossomal.
Em Portugal, apenas aproximadamente 140 pessoas estão diagnosticadas. Acredita-se assim que vários doentes poderão estar ainda por diagnosticar, sobretudo na doença de Gaucher de aparecimento mais tardio.
Quais as suas causas?
É uma doença genética, de transmissão autossómica recessiva.
Cada um de nós possui dois conjuntos de genes: um proveniente da nossa mãe e outro do nosso pai. Para desenvolver os sinais e sintomas da doença de Gaucher, é preciso que seja herdado um gene anómalo de cada um.
Assim, existe para cada gravidez de pais portadores, uma probabilidade de 25% do bebé herdar dois genes anómalos e, portanto, de ter doença de Gaucher.
Se ambos os pais não tiverem doença de Gaucher ou não forem portadores do gene anómalo, nenhum dos filhos será doente ou portador.
Sabendo que as suas manifestações clínicas dependem dos órgãos ou sistemas afetados, quais os traços comuns desta patologia? Quais os principais sintomas? E quais as principais complicações?
A falta da enzima glucocerebrosidase, leva à acumulação de substâncias dentro dos lisossomas dos macrófagos que estão presentes em vários órgãos e tecidos, principalmente no baço, fígado, medula óssea, sistema nervoso central, pulmão e gânglios linfáticos.
Ao haver uma acumulação anómala destas gorduras nas células destes órgãos, pode verificar-se um aumento volume do baço e do fígado; a medula óssea tem dificuldade em produzir as células do sangue, levando a anemia, diminuição do número de plaquetas e/ou de glóbulos brancos; os ossos ficam mais frágeis e podem apresentar múltiplas lesões, queixando-se os doentes, muitas vezes, de dor óssea crónica e/ou aguda e apresentando fraturas ósseas patológicas. Nalgumas formas da doença há acometimento do sistema nervoso, com alterações oculares, convulsões, espasticidade, atraso mental severo.
A maior longevidade dos doentes com doença de Gaucher tipo 1, com um prognóstico mais favorável, apesar do atraso frequente no reconhecimento da doença, pode levar também a mais complicações, principalmente se na ausência de adequado tratamento.
Nestes doentes, o risco relativo para o surgimento de outras doenças parece também ser superior, como por exemplo doença de Parkinson e demência ou à ocorrência de doenças hematológicas e/ou oncológicas.
De acordo com os dados divulgados, uma em cada 6 pessoas espera sete anos pelo diagnóstico. O que dificulta a detecção da doença?
É uma doença grave, crónica, progressiva e multissistémica que se pode apresentar com um conjunto muito variado de sinais e sintomas que são comuns a outras doenças. Este facto faz com que o diagnóstico da Doença de Gaucher nem sempre seja equacionado, provocando o seu atrasado, por vezes em vários anos.
Qual é a idade média de diagnóstico? Em que altura da vida são diagnosticados a maioria dos casos?
A doença de Gaucher é uma doença genética, que se pode apresentar em qualquer idade, no entanto uma parte significativa dos casos só é diagnosticada na idade adulta.
Neste sentido, que exames são necessários? Qual o especialista a quem recorrer?
Hoje em dia, havendo suspeita clínica, o diagnóstico é fácil, rápido e praticamente indolor, obtendo-se através duma simples gota de sangue, retirada por uma picada no dedo.
Os doentes de Gaucher são habitualmente seguidos por pediatras, internistas ou hematologistas, atendendo às manifestações e ao caráter multissistémico da doença, mas qualquer médico poderá fazer o diagnóstico.
O diagnóstico pré-natal está igualmente disponível.
Qual a importância do diagnóstico precoce? E quem deve realizar exames de rastreio?
A identificação da doença de forma precoce e o rápido e adequado encaminhamento para seguimento e tratamento especializados, são premissas essenciais para um melhor resultado terapêutico e prognóstico nestes doentes.
No entanto, a doença de Gaucher tem um leque muito variado de apresentações clínicas, e obriga ao diagnóstico diferencial com uma série de outras patologias.
Assim, alguns grupos de especialistas nesta doença têm proposto e realizado alguns rastreios (mas não de forma sistemática) baseados nos sinais e sintomas que são mais frequentes nestes doentes, como por exemplo o aumento do baço, a anemia e diminuição das plaquetas.
Na prática clínica, o mais importante continua a ser a capacidade de estarmos alerta para a doença por forma a diminuir o tempo até ao correto diagnóstico.
Nas famílias com doentes diagnosticados com doença de Gaucher, atendendo a que se trata de uma doença de transmissão genética, devem ser realizados rastreios e aconselhamento genético aos familiares em risco de terem a doença.
A doença atinge duas pessoas do mesmo modo? Sendo que existem 3 tipos principais desta patologia, qual o mais comum?
A doença de Gaucher afeta os doentes de diversas formas. Para alguns, a doença é ligeira e pode não ser aparente até se tornarem adultos. Para outros, os sintomas podem devolver-se pouco depois do nascimento.
Clinicamente é classificada em três subtipos:
- Tipo 1, também conhecida como forma adulta ou não-neuropática, é a mais comum (mais de 90% de todos os casos de doença de Gaucher) e não afeta o sistema nervoso do doente. Com uma incidência de 1:10.000, é mais frequente entre os judeus Ashkenazi e apresenta uma sobrevida estimada apenas ligeiramente diminuída em relação à da população geral (aproximadamente menos 9 anos). Pode incluir uma série de sinais e sintomas como problemas ósseos, alterações no sangue, cansaço e um baço e fígado aumentados.
- Tipo 2, a forma infantil ou neuropática aguda, é uma forma muito rara e grave da doença. Apresenta uma incidência de 1:100.000, com uma distribuição pan-étnica e sobrevida estimada menor que os três anos de idade. Os sintomas aparecem pouco depois do nascimento e incluem os já descritos, mas envolvem também o sistema nervoso, como por exemplo rigidez dos braços e pernas, convulsões e dificuldade em engolir.
- Tipo 3, forma juvenil ou neuropática crónica, é também muito rara e inclui sintomas sistema nervoso, mas não é tão grave como o tipo 2. Os sintomas podem começar em bebé mas podem também surgir apenas mais tarde. Incluem alterações do movimento dos olhos e todos os sintomas descritos anteriormente. Com uma incidência de 1:50:000, é mais frequente entre os suecos Norrbotten e a sobrevida estimada é inferior a 40 anos.
Qual o seu prognóstico?
Sendo a Doença de Gaucher clinicamente heterogénea e classificada em três subtipos, o seu prognóstico pode, tal como descrito anteriormente, variar de benigno a extremamente grave consoante o subtipo de apresentação.
De qualquer forma, pela sua cronicidade e progressão, podemos assumir que se não for tratada pode levar a uma sintomatologia exuberante, incapacitante e a uma morte precoce.
Quando o tratamento é atempadamente instituído, os resultados são habitualmente favoráveis, com recuperação dos valores hematológicos, redução do volume dos órgãos e prevenção das lesões ósseas, melhorando consideravelmente a qualidade de vida dos doentes.
Nos doentes com doença de Gaucher tipo 3, quando o tratamento é ineficaz a deterioração neurológica progressiva tem um impacto negativo no seu prognóstico.
No caso dos doentes de Gaucher tipo 2, o prognóstico é sempre fatal.
Em que consiste o tratamento para a Doença De Gaucher?
O tratamento da doença de Gaucher consiste na administração quinzenal ou mensal, por via endovenosa, da enzima em falta (terapia de substituição enzimática). Outra opção terapêutica, indicada apenas para alguns doentes é um medicamento oral que reduz as substâncias acumuladas (terapia de redução do substrato). No entanto, o tratamento específico não é indicado para todos os casos.
O objetivo é tratar os doentes antes do início das complicações, cujas sequelas são incapacitantes ou que já não poderão ser melhoradas por tratamentos adicionais.
No âmbito do Dia Mundial da Doença de Gaucher, que se assinala hoje (1 de outubro), que mensagem gostaria de deixar? A que sinais devemos estar atentos?
Embora seja a mais comum das doenças de depósito lisossomal, a doença de Gaucher, permanece rara e na maioria dos casos apresenta-se de forma gradual, com vários sinais e sintomas comuns a outras doenças, como a dor óssea, a anemia, o aumento do baço, o que explica muitas vezes o atraso no seu diagnóstico e impede a atempada instituição de tratamento dirigido, que permite a franca melhoria da qualidade de vida dos doentes e um melhor prognóstico.
Devemos assim promover o conhecimento e a atenção, tanto dos profissionais de saúde como da população em geral, para esta doença e atuar de forma célere sempre que surja uma suspeita!
Fonte: Atlas da Saúde (01/10/2018)