A medicina privada que temos
Raramente a razão está com os que têm uma posição dogmática sobre um tema. Embora a pandemia tenha deixado claro, que só um SNS forte e estruturado é capaz de responder a um problema grave de saúde pública, isso não quer dizer que possamos dispensar os cuidados prestados pela Medicina Privada. Todos acabaram por ser chama -dos a dar o seu contributo, embora não nos devamos esquecer da proporção das coisas, baralhados por uma qualquer cegueira política, de direita ou de esquerda.
No pico da 2ª vaga Covid, os hospitais públicos ficam atulhados de doentes Covid e não Covid, com filas de ambulâncias à porta das Urgências e doentes a serem tratados dentro delas. Apesar dos Portugueses se terem habituado ao caos anual das Urgências, com muitas horas de espera para serem observados, aquela visão das luzes das ambulâncias a iluminarem a noite lisboeta, ficou-nos na memória, como um vislumbre do apocalipse. Nessa altura, todos os hospitais de reinventaram, transformando a maior parte dos serviços cirúrgicos em áreas médicas, para alocarem os doentes Covid e não Covid, que chagavam às catadupas! Mas, muitos dirigentes hospitalares acabaram por entrar em desespero, normalmente silencioso, porque as camas nas enfermarias e nos Cuidados Intensivos estavam a esgotar-se, apesar dos esforços levados ao limite.
O Governo acordou tarde, para a necessidade de recrutar os privados para o combate à pandemia. Normalmente, nestes casos de atraso na decisão política, por falta óbvia de previsão, o negócio é desfavorável para o erário publico. Não sei como foi, mas lá se conseguiram algumas camas nos Hospitais Privados, principalmente para doentes médicos não Covid, de abordagem menos complexa. Do meu conhecimento, foi pequeno o número de doentes médicos ou cirúrgicos graves, internados nos Hospitais Privados no contexto de pandemia. Não quero desvalorizar esta ajuda, que foi muito importante naquela altura dramática. Terá sido a possível.
Só os mais atentos se aperceberam da incongruência entre o grande número propalado de camas existentes nos hospitais privados e aquelas que foram mobilizadas. Desta vez, não foi por inépcia do governo que isso aconteceu. Salvo raras exceções, a maior parte dos Hospitais Privados mostraram-se incapazes de receber mais doentes. Tinham camas, mas sem médicos e enfermeiros suficientes para as poderem ocupar.
A maior parte da equipa de saúde, vai do Hospital Público fazer umas horas à privada. Serve para “compor” o magro salário, cerca de metade do que se aufere, em qualquer País europeu. Quando a obrigação de turnos extraordinários cresceu no Hospital Publico, a disponibilidade para a privada ficou menor. Ficaram as paredes marmoreadas e as camas vazias, que, sozinhas, não tratam doentes.
Somos um País pobre, com baixos salários e as mudanças no Sistema de Saúde não podem ser abruptas. Mas, devemos ter a noção clara que o caminho certo deve ser o da separação dos médicos e enfermeiros entre setor privado ou publico. Não estamos a inventar nada. É assim na maior parte dos Países.
Um primeiro passo, seria o de fazer depender a autorização de abertura de um novo Hospital Privado de um quadro de pessoal próprio, adaptado à sua lotação de camas. Se é assim nas Universidades Privadas, porque não fazê-lo com os Hospitais? Só assim podemos saber com aquilo que podemos contar, do setor público e do privado, quando chega a hora de unir esforços. A menos que continuemos a teimar viver na ilusão.
João Araújo Correia – Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna
Artigo publicado na edição do Jornal Expresso – 25/06/2021