A Medicina Interna, uma especialidade versátil no Serviço de Urgência
Vivem-se tempos difíceis para a saúde em Portugal, em particular para portugueses doentes. O SNS parece estar a desmoronar-se e em cada dia se descobrem novas complicações e descontentamentos, todos eles com base concreta.
O problema é sistémico, mas, do que se fala, é dos Serviços de Urgência (SU). Há um grande número de doentes, os tempos de espera são longos, há falta de cobertura dos turnos nas urgências, os profissionais estão exaustos e os doentes estão cansados. O que é certo é que Portugal é o país da OCDE com maior número de recursos aos Serviços de Urgência por cada 100 habitantes, rondando os 16 mil episódios por 24 horas. Destes, cerca de 41-42% são doentes (habitualmente triados com pulseiras verdes ou azuis), que embora necessitando de atendimento médico rápido, não teriam necessidade de ser atendidos num SU onde outros doentes mais emergentes podem passar despercebidos e aí, o prejuízo é irreversível.
Então o que se está a passar? Os doentes menos graves recorrem às urgências porque não têm literacia? Porque gostam de aguardar horas num espaço confinado cheio de outros doentes? Porque querem fazer muitos exames? Claro que não! Estes doentes não têm alternativa porque não encontram fora do hospital a resolução do problema.
Portanto, um dos constrangimentos está, sem dúvida, a montante e fora dos hospitais.
Os SU dos hospitais são para atender doentes com doença aguda que precisem de cuidados diferenciados.
Há necessidade de reforçar a rede de Cuidados Primários, nos Centros de Saúde com médicos especialistas de Medicina Geral e Familiar e com outros profissionais de Saúde que vão seguir os doentes crónicos, que conhecem bem o seu contexto social e familiar e que, em caso de descompensação possam atendê-los em tempo útil, evitando a inevitabilidade de recorrer aos SU hospitalares. Os Centros de Saúde precisam estar abertos até mais tarde, apetrechados com alguns exames complementares que possam suportar decisões de diagnóstico ou terapêutica.
Por outro lado, o incremento nos hospitais de soluções com acesso rápido dos doentes a consultas abertas hospitalares, unidades de diagnóstico rápido, hospitais de dia, equipas de suporte a doentes crónicos e soluções de proximidade poderiam também reduzir o afluxo de doentes aos SU.
Existem alternativas e com elas teríamos, muito provavelmente, não 16 mil episódios de urgência nas 24 horas nos hospitais, mas 9200 ou 9300 ou ainda menos.
Uma solução muitas vezes defendida por alguns, é a criação de uma nova especialidade, de Urgência e Emergência. Criar uma especialidade de medicina de urgência não responde a esta problemática. Até pode ser uma saída possível para qualificar alguns médicos sem especialidade que trabalham em regime de tarefa nos SU, mas não constitui nenhuma solução para o problema essencial dos SU. Não passa de um penso rápido numa ferida profunda. Vamos continuar com os mesmos doentes ou mais, e encher os SU de médicos é uma medida de curto prazo, aparentemente necessária enquanto não se desenvolve o resto, mas sem sustentabilidade ou racionalidade. Criar uma especialidade de medicina de urgência seria uma opção politicamente correta, mas seria também um tiro ao lado, completamente ineficaz e desajustada dos reais problemas do SNS e dos SU.
Outro argumento a favor da especialidade de urgência e emergência, é que Portugal é um dos 5 países da Europa em que a especialidade não existe. Realmente, os países do Sul da Europa não têm essa tradição porque não sentem essa necessidade. Têm uma Medicina Interna sólida. Vejamos Espanha, tem um bom apoio nos cuidados primários e o fluxo de doentes no SU é menor, não precisa da especialidade de Urgencia e Emergência.
A Medicina Interna portuguesa é substancialmente diferente da que existe na generalidade dos países europeus. A nossa Medicina Interna é autónoma e os internistas não têm dupla titulação, mantendo uma atividade clínica abrangente e diversificada, o que os torna adequados aos doentes que acorrem às nossas urgências com patologia médica, quer aos verdadeiramente urgentes, quer aos outros.
Não há especialidades criadas para um local de trabalho, neste caso a urgência. Qual é a base clínica, científica e racional para este tipo de especialidade? Como vai ser feita a formação destes clínicos? Qual é o seu currículo de formação? Quem dará formação? São os internistas? A que funções se destina dentro do SNS? É para cobrir os Serviços de Urgência básica? Será exequível ter médicos a fazer apenas e só esta valência 40 anos seguidos sem sofreram de exaustão?
Quem tem assegurado maioritariamente os SU são os especialistas de Medicina Interna. Os internistas têm competência para garantir a maioria das situações médicas urgentes e emergentes, e na verdade asseguram-nas diariamente em todo o país. Se forem formados e colocados no SNS mais internistas nos hospitais, é possível completar as equipas-tipo de urgência de medicina interna e construir simultaneamente as restantes soluções, alternativas racionais ao SU.
Para além disto, os internistas são o garante da continuidade dos cuidados. Cerca de 70% dos doentes internados vêm do SU. Nas áreas médicas esse número chega aos 90%. Não faz sentido uma continuidade de cuidados? o especialista de Medicina Interna, está especialmente vocacionado para o acompanhamento dos doentes num círculo completo, desde a sua entrada no hospital através da urgência ou da consulta, passando pelo internamento nas suas diferentes formas, em enfermaria, nos cuidados intermédios ou intensivos e no domicílio, nos hospitais de dia, nos cuidados paliativos, em diversas unidades multidisciplinares até ao momento da alta e, novo, na consulta. É o internista que faz uma abordagem sistémica no doente com doença aguda ou crónica e que utiliza como arma, o raciocínio clínico para chegar aos diagnósticos difíceis.
Sem dúvida que o SNS está doente, e que os SU estão com problemas graves. É importante incrementar medidas que possam a curto prazo colmatar algumas inconformidades, mas, também, calcular o longo prazo e esquecer as falsas panaceias que apenas servem interesses políticos ou de grupos de pressão.
É preciso maior investimento nos Cuidados de Saúde Primários criando mais Unidades de Saúde Familiares e promovendo a redução da população sem Médico de Família. É fundamental investir nos Cuidados de Saúde Hospitalares garantindo médicos qualificados e em número adequado, bem como os outros profissionais de saúde. É necessário investir nas formas alternativas aos SU. É importante alterar o modelo de financiamento dos hospitais e permitir mais autonomia para contratações e aquisição de equipamentos, e haver entidades que avaliem resultados e validem opções.
Os internistas estão do lado da solução e são competentes no SU. A Medicina Interna é uma especialidade versátil, autónoma, abrangente e integradora e está na linha da frente da defesa do SNS e dos doentes.
Este artigo foi publicado no Diário de Notícias
Lèlita Santos – Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna
(11/07/2022)