A Evolução da Hospitalização Domiciliária em Portugal

Francisca Delerue – Diretora do Serviço de Medicina Interna e da Unidade de Hospitalização Domiciliária do H. Garcia de Orta

A Hospitalização Domiciliária define-se como um modelo de assistência hospitalar direcionado para a prestação de cuidados no domicílio a doentes com doença aguda, ou crónica agudizada, cujas condições biológicas, psicológicas e sociais o permitam. Distingue-se dos cuidados domiciliários dos centros de saúde, pela prestação de cuidados intensivos e altamente especializados em estados agudos e complexos de doença.

Centra-se nas necessidades do doente, mais humanizada e sem as complicações inerentes à hospitalização convencional, oferecendo um serviço de qualidade com o rigor clínico e a visão holística e humanizada, sempre que a permanência no hospital seja prescindível.

A Medicina Interna, enquanto especialidade generalista hospitalar, assume neste contexto um papel-chave na gestão do doente hospitalar com comorbilidades no domicílio. Sendo a população alvo maioritariamente idosa, com elevada prevalência de doenças crónicas e com diversas patologias, tendo em conta o custo-efectividade, o médico deverá ter uma formação generalista e uma visão holística do doente, pelo que os Especialistas de Medicina Interna se afiguram com o perfil recomendado.

A HD pretende desenvolver um trabalho interdisciplinar em equipa e em coordenação com os demais recursos sócio-sanitários do SNS, nomeadamente, os cuidados primários e terciários, pelo que, conta com equipas integradas por outros profissionais, nomeadamente farmacêuticos, nutricionistas, fisioterapeutas, assistentes sociais, pessoal administrativo e administradores hospitalares.

Existem dois modelos possíveis que podem ser adotados em separado. Um, que substitui completamente a admissão de doentes, referenciando os doentes diretamente do serviço de urgência (SU) e/ou comunidade e outro, que facilita a redução da estadia hospitalar e recruta os doentes nas enfermarias após um período de estabilização clínica inicial.

No entanto, é frequente a adoção de um modelo misto, isto é, uma combinação em grau variado dos dois modelos referidos, dependente das necessidades do hospital. O modelo das unidades existentes em Portugal é misto, assente em programas de transferência das enfermarias médicas, cirúrgicas e admissão diretamente do SU, consultas externas, hospital de dia ou da comunidade através da Cuidados de Saúde Primários.

Encontram-se bem estabelecidos na literatura, o tratamento agudo de um conjunto variado de doenças (doença pulmonar obstrutiva crónica, insuficiência cardíaca crónica, celulites/erisipela, infeções adquiridas na comunidade ou hospitalar, infeções por microrganismos multirresistentes), de modo seguro e custo-efetivo.

A HD privilegia uma estreita colaboração com os Cuidados de Saúde Primários (CSP), na busca da melhor solução para o bem-estar e saúde do doente. Sempre que a intensidade e os procedimentos clínicos/terapêuticos e de cuidados se atenuem, e se perceciona poderem ser realizados pelos CSP, a UHD abrevia o tempo de internamento e discute a passagem da responsabilidade para a esfera dos CPS. De igual modo, em caso de necessidade de internamento com nível de cuidados hospitalar, os doentes com domicílios pelo CSP, podem ser admitidos, sem necessidade de sair da sua casa para o internamento convencional, desde
que cumpram os critérios de admissão na UHD.

Segundo a literatura, a HD mostrou vantagens relativamente ao internamento convencional, nomeadamente menor taxa de infeção nosocomial, menor incidência de síndroma confusional agudo, menor risco de acamamento, de deterioração do estado funcional e de desnutrição. De acordo com a experiência portuguesa, existe um maior tempo de dedicação exclusiva pelos profissionais de saúde ao doente e verificamos um maior envolvimento do doente e do cuidador em todo o processo, o que contribui para a educação e literacia da comunidade e para uma maior adesão aos cuidados de saúde e à terapêutica.

A Hospitalização Domiciliária (HD) em Portugal, teve início no Hospital Garcia de Orta, EPE (HGO) em 2015, tendo sido pioneiro na criação e implementação do primeiro programa de HD, inspirado na experiência do Hospital Universitário Infanta Leonor, em Madrid.
Não havendo na altura qualquer diretiva nacional em relação à HD, a equipa elaborou um plano funcional que foi reportado à DGS, com obrigatoriedade de envio de relatórios regulares em relação à actividade desenvolvida. Foi com base no sucesso deste programa e outras experiências internacionais já consolidadas, que foi emitido em Diário da República o decreto que determina a estratégia de implementação da HD no SNS (Despacho n.º 9323-A/2018). Neste seguimento, a DGS emitiu com o apoio da equipa do HGO, no mesmo ano, a norma n.º 020/2018 referente à Hospitalização Domiciliária em Idade Adulta. Desse modo, em outubro de 2018 foi criada a Estratégia Nacional para a Hospitalização Domiciliária (ENHD), com a nomeação do Dr. Delfim Rodrigues como Coordenador Nacional. Nessa mesma data, 25 hospitais do SNS assinaram um compromisso para a criação destas unidades durante o ano de 2019.
Em 2019 foi criado o Núcleo de Estudos de Hospitalização Domiciliária (NEHospDom) da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI), com o intuito de colaborar na formação, uniformização e partilha de conhecimentos entre as várias unidades. Pretende também promover a investigação. O NEHospDom já realizou no final de 2020 um curso sobre HD e encontra-se a organizar o 1º Congresso Nacional de Hospitalização Domiciliária que vai decorrer a 18 e 19 de junho.

Em maio de 2021 encontram-se 34 unidades em funcionamento no Serviço Nacional de Saúde. No ano de 2019 foram tratados 3000 doentes, em 2020 cerca de 4830 doentes, e, no primeiro trimestre de 2021 foram tratados 1640 doentes. Segundo a ENHD estes números correspondem a um hospital de média dimensão, com 200 camas demonstrando, sem dúvida, a eficiência económico-financeira deste modelo.

Durante a pandemia a infeção a SARS-CoV-2 declarada pela Organização Mundial da Saúde em março de 2020, houve a necessidade emergente de reorganizar o serviço de saúde, em particular o Sistema Nacional de Saúde, com foco nas instituições hospitalares, de forma a ser possível dar resposta à procura massificada de cuidados, essencialmente por doentes respiratórios. Tendo por base as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), o Núcleo de Estudos da Hospitalização Domiciliária (NEHospDom) da SPMI, elaborou um documento de consenso sobre o posicionamento que as UHD poderiam adotar e a DGS publicou a 23 de março na norma n.º 004/2020 os termos em que isto poderia acontecer.

Os benefícios das UHD em plena pandemia de COVID-19 foram substanciais – desde a diminuição da sobrelotação dos serviços de saúde, à diminuição do risco de transmissão em contexto hospitalar, à prestação de cuidados mais centrados no doente e, por último, com a tecnologia adequada, permite a monitorização remota de doentes no seu domicílio, com consequente diminuição da necessidade de equipamentos de proteção individual.
Foi notório o contributo da HD na situação pandémica que atravessámos, salientando os seus benefícios.

A HD contribui para a otimização dos serviços de internamento e leva à expansão do hospital ultrapassando os condicionamentos físicos do seu edifício. Pode ainda funcionar como porta de admissão alternativa ao Serviço de Urgência, evitando deslocações do doente desnecessárias e libertando o Serviço de Urgência para o doente urgente e emergente.

A HD representa uma solução para o Sistema Nacional de Saúde perante um problema de sobrelotação, com as vantagens clínicas para o doente.

Artigo de Opinião de Francisca Delerue
Diretora do Serviço de Medicina Interna e da Unidade de Hospitalização Domiciliária do H. Garcia de Orta

(19/06/2021)